segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

Mais um williamsonista delirante: Peter Duesberg e sua teoria da conspiração da AIDS

Como já alertado por Ted Goertzel (2010): “Teorias da conspiração que têm como alvo pesquisas específicas podem ter sérias consequências para a saúde pública e políticas ambientais”.

A citação acima está no artigo de 2010 publicado na EMBO reports por Ted Goertzel, “Conspiracy theories in science” (teorias da conspiração em ciência), onde ele discorre sobre as consequências de tais ideias na população.

Atualmente, diversas teorias da conspiração vêm surgindo nas ciências naturais, incluindo as ideias de que o aquecimento global é uma fraude ou de que vacinas e alimentos transgênicos são nocivos. Mas aqui falarei mais especificamente de outra teoria da conspiração que é tão ou mais grave do que as citadas acima: a ideia de que a AIDS não é causada pelo vírus HIV.

O maior defensor desta teoria irracional é Peter Duesberg, um professor de biologia molecular e celular na Universidade da California, Berkeley.  Desde 1987 (ou seja, há 26 anos!) ele defende tal ideia absurda que é rejeitada por todos os grandes grupos de pesquisa em AIDS do mundo inteiro.
Este é o senhor em questão. Mantenham-se atentos!
Duesberg age principalmente exigindo respostas dos pesquisadores, mas sem realmente prover qualquer evidência que suporte sua ideia. A meu ver, ele poderia ser classificado como mais um portador de Síndrome de Williamson, como já o são Donald Williamson (de onde vem o nome deste estado delirante), defensor da hibridogênese, e Retallack, defensor da Ediacara terrestre.

Em 1995, Duesberg entrou num debate com o editor da Nature, John Maddox, a respeito deste assunto. O comportamento de Duesberg foi, no entanto, tão estúpido que Maddox se cansou de continuar aceitando ouvi-lo. Caso uma pergunta de Duesberg fosse deixada sem resposta, este imediatamente considerava isso como prova de que o vírus HIV não causa a AIDS. Por outro lado, qualquer evidência que refutava sua visão divergente era ignorada completamente.

De qualquer forma, as ideias de Duesberg e seus seguidores são tão absurdamente ridículas que a comunidade científica no geral tende a simplesmente ignorá-lo. O problema é quando alguém com uma visão destas decide se manifestar em meios de comunicação do público leigo.

Há algum tempo (em 2000, mais precisamente), a revista brasileira de “divulgação científica” Superinteressante (que qualquer indivíduo com bom senso sabe que hoje em dia não passa de uma publicação sensacionalista) decidiu fazer uma entrevista com Duesberg. Na época, a tal entrevista passou praticamente ignorada, mas esta semana foi divulgada num website de notícias (ou o que quer que seja) brasileiro, o “Vale Agora Web”. (Alguém já tinha ouvido falar desse website antes?)

De forma irresponsável, o site publicou a entrevista com títulos chamativos e ilusórios, incluindo até mesmo mentiras, como uma afirmação de que Duesberg é detentor de um prêmio Nobel, o que uma busca rápida no website do prêmio já revela ser falso.

Rapidamente a notícia passou a ser compartilhada em redes sociais por diversos jovens surpresos com a “revelação”, aparentemente crendo que o que estava escrito ali se tratava de uma revelação “bombástica”. É triste ver o quão facilmente o público leigo é convencido por aquilo que os meios de comunicação não especializados divulgam. A falta de instrução neste campo faz com que a população compre as ideias sem procurar analisar as fontes e o quão confiáveis estas são.

Além de triste, tal situação também se torna alarmante, pois pode levar a comportamentos imprudentes e diminuir o alcance de campanhas de prevenção, como aquelas que incentivam o uso de preservativos e agulhas limpas.

Pesquisadores da AIDS argumentam que Duesberg se baseia em leitura seletiva de publicações, ignorando aquelas que possam refutar sua ideia e exigindo provas impossíveis dos grupos de pesquisas.

Políticas de publicação atuais alertam que cientistas com descobertas controvérsias precisam ser cautelosos na divulgação de suas ideias. É necessário, em tais situações, divulgar dados que permitam a outros grupos replicarem os experimentos para tentarem chegar às mesmas conclusões.

Publicações científicas atuais são em sua quase totalidade submetidas a um processo de revisão por outros pesquisadores, de forma anônima, como garantia de que não haja influências pessoais ou profissionais no julgamento do trabalho. Conspiracionistas, no entanto, tendem a atacar este processo com ideias como as de que o anonimato implica que os revisores “escondem alguma coisa”.

E é assim que estes pseudocientistas fazem para conseguirem suas publicações: burlando o processo de revisão. Em 1989, Duesberg publicou um artigo na revista PNAS sem passá-lo pelo processo de revisão, algo que parece ser permitido para membros da National Academy of Sciences. Uma versão anterior do artigo havia sido submetida a três revisores, todos os quais encontraram uma série de problemas na exposição e argumentação das evidências, incluindo um revisor sugerido pelo próprio Duesberg! Mesmo assim, com o auxílio do editor da PNAS na época, o artigo foi publicado.

Agora se formos nos lembrar do caso de Donald Williamson, uma situação semelhante ocorreu. Com uma ajudinha de Lynn Margulis, este conseguiu publicar seu artigo sobre hibridogênese, por mais que toda a comunidade científica ridicularize tal ideia.

No meu artigo sobre os delírios de Williamson, eu também citei superficialmente que Lynn Margulis em seus últimos anos de vida estava defendendo a ideia de que o HIV não é o causador da AIDS. Pois é, vejam só!
Escrevi o presente artigo muito rapidamente e sem intenções de me aprofundar no assunto ou apresentar provas reunidas de que o HIV realmente cause a AIDS. Há publicações científicas disponíveis sobre o tema aos milhares. O meu objetivo aqui foi simplesmente apresentar esta situação e alertar sobre os perigos de se acreditar em qualquer afirmação divulgada pelos meios de comunicação. É preciso ser cauteloso e sensato.
A comunidade científica como um todo continua afirmando, com provas suficientes para isso, de que o HIV é sim o agente causador da AIDS. Duesberg e seus aliados são apenas arruaceiros pseudocientistas tentando disseminar ideias conspiratórias.

Sejam inteligentes e não caiam nessa armadilha pseudocientífica.

---

Referências:

Booth, W. (1989) AIDS Paper Raises Red Flag at PNAS. Science 243: 733. DOI: 10.1126/science.2916121

Cohen, J. (1994) The Duesberg Phenomenon. Science 266: 1642-1644.

Dieguez, F. (2000). Peter Duesberg. Superinteressante, outubro de 2000. Disponível em: <http://super.abril.com.br/ciencia/peter-duesberg-441685.shtml>. Acesso em 9 de dezembro de 2013.

Goertzel, T. (2010). Conspiracy theories in science. EMBO reports 11: 493-499. DOI: 10.1038/embor.2010.84


“Redação” (2013). Bomba! “O HIV é um vírus inofensivo e não transmite a AIDS”, afirma ganhador do Nobel. Vale Agora Web. Disponível em: <http://valeagoraweb.com.br/mundo/bomba-o-hiv-e-um-virus-inofensivo-e-nao-transmite-a-aids-afirma-ganhador-do-nobel/>. Acesso em 9 de dezembro de 2013.

Por que todo mundo ri de Williamson, o "melhor amigo" de Lynn Margulis

(Este artigo é uma tradução do meu artigo Why Everybody Laughs at Williamson, Lynn Margulis' "Best Friend" que pode ser lido aqui)

O que você pensaria se alguém chegasse em você e dissesse que o seu caracol de estimação acidentalmente engravidou e você é o pai? Ou você foi ao médico e ele lhe disse "parabéns, você está grávida e o pai é um ouriço-do-mar". Com certeza você sentiria orgulho, não é?

Bem, se você pensa que isso é um absurdo ridículo, você está certo! Mas adivinhe, há um cientista senior (i.e., muito velho) alegando que tal coisa acontece na natureza o tempo todo! E qual é o seu nome? Donald I. Williamson.
Donald I. Williamson. Encontrei essa foto (a única), num blog polonês  (biokompost.wordpress.com). Infelizmente eu não falo polonês... ainda.
Nascido em 1922, ele é um planctologista e carcinologista britânico, já aposentado, é claro. Mas pelo menos desde 1987 vem publicando uma série de artigos estranhos afirmando que híbridos entre diferentes filos de animais aconteceram muitas vezes durante a história do reino animal.

Tudo começou, como já mencionado, em 1987, em seu artigo "Incongruous Larvae and the Origin of some Invertebrate Life-Histories" (Larvas Incongruentes e a Origem da História de Vida de alguns Invertebrados), onde ele considera as enormes diferenças entre adultos e larvas em muitos animais, primeiramente considerando echinodermos em especial. Sua ideia "revolucionária" é que larvas e adultos evoluíram separadamente em diferentes linhagens de animais e mais tarde se tornaram uma espécie única por hibridização. Ele alega isso incialmente com a citação de trabalhos que sugerem a possibilidade de transferência horizontal de genes entre organismos distantemente relacionados, principalmente causada por vírus levando uma quantidade pequena do DNA do hospedeiro de um organismo para o outro. Assim ele aparentemente pensou "Se é possível levar um gene de um animal para outro, por que isso não poderia acontecer com o genoma inteiro?".

Equinodermos, suas primeiras vítimas, são considerados como tendo hibridizado com hemicordados, assim explicando porque a larva dos dois grupos é tão similar. Ao final, ele admite que não fez qualquer pesquisa em relação a todos ou a maioria dos trabalhos recentes sobre desenvolvendo e filogenia dos grupos alvos.

Uma estrela do mar (Echinoderma) e um balanoglosso (Hemichordata). Certamente um casal adorável. Fotos por Mike Murphy e Philcha, da Wikipedia.

Aqui é interessante citar um trabalho por Švácha (1992) estudando os discos imaginais em larvas de insetos holometábolos (aqueles com estágios de larva, pupa e adulto). Discos imaginais são regiões de células aparentemente não diferenciadas em larvas de insetos e inicialmente consideradas como a fonte da maioria das características dos adultos não encontradas em larvas, bem como responsáveis pela substituição dos órgãos das larvas por novos em adultos, como as antenas da larva sendo substituídas por novas durante a transição de um estágio para outro. Švácha percebeu, no entanto, que isso na verdade não acontece e que discos imaginais somente ajudam a desenvolver estruturas larvais, mas não as substituem por novas. Ou seja, a forma adulta dos insetos não vem de um segundo "embrião" escondido dentro da larva.

É claro que Williamson ignorou esse artigo e muitos outros e em 2001 trouxe outro argumento para se sustentar: uma falácia.

Você pode ou não saber, mas a teoria endossimbionte sugere que organelas intracelulares, como mitocôndrias e cloroplastos, se originaram de bactérias associadas a células eucarióticas. Pode-se então supor que a função de organelas intracelulares existiu antes das próprias organelas, assim para Williamson foi completamente lógico assumir que as características de larvas existiram antes dos animais terem larva.

Como se ele estivesse num estado frenétco, Williamson começou a descarregar toneladas de hibridizações "perfeitamente possíveis" entre grupos animais. Para citar algumas:

  • Larvas de turbelários vieram de rotíferos 
  • Larvas de equinodermos vieram de hemicordados 
  • Larvas de tunicados vieram de Appendiculata (um grupo antigo que compreendia artrópodes, anelídeos, rotíferos e outros) 
Um policladido (Turbellaria) e um 'animal-roda' (Rotífera). Outro casal adorável. Fotos por Dr. James P. McVey do NOAA Sea Grant Program; e Absolutecaliber, da Wikipedia.

E para deixar ainda mais bizarro, ele sugeriu que a blástula dos embriões animais veio de uma hibridização com Volvocales, um grupo de algas verdes!

De acordo com Williamson (2001), a blástula de embriões de animais veio de uma hibridização com uma alga do grupo Volvocales (esquerda). Fotos pela Agência de Proteção Ambiental, Governo Federal dos EUA; e Pearson Scott Foresman, da Pearson Company.

E como você também pode ver ao ler seu trabalho, a maioria de suas referências são seus próprios trabalhos anteriores, obviamente indicando uma falta de interesse em qualquer estudo REAL tentando entender a origem de diferenças entre larvas e adultos. Também vale a pena notar que Williamson possuía uma fobia incomum pelos nomes das classes de equinodermos, visto que a terminação -oidea era incômoda demais para ele para ser vista em algo que não fosse uma superfamília.

Em 2006, Minelli et al. apresentaram uma revisão interessante de pesquisas considerando o desenvolvimento de artrópodes de formas larvais para adultos, onde uma das explicações possíveis para a drástica mudança ocorrente em larvas de insetos holometábolos não é nada mais completo que uma forma de "neotenia", isto é, quando estágios iniciais de desenvolvimento duram mais tempo no ciclo de vida de um organismo. Neste caso, a coisa provável que ocorre é que a larva de insetos holometábolos são algo como embriões bem desenvolvidos e móveis; nada tão estranho, certo? E adivinhe? Em toda a revisão não há uma única menão a Williamson, e nós todos podemos imaginar por quê...

No mesmo ano, Williamson ataca novamente com outro papel, desta vez afirmando que a explosão cambriana ocorreu devido ao grande número de hibridizações com transferência larval e, como em todos os seus trabalhos anteriores, usa o argumento de que "a seleção natural não pode explicar tais divergências entre adultos e larvas". Nós tabém podemos perceber que ele ignora completamente todas as publicações recentes relacionadas a filogenética e genômica e, ao menos ao que parece para mim, ignore qualquer coisa relacionada a teorias evolutivas que não seja "A Origem das Espécies" de Darwin e os trabalhos de Lynn Margulis (por quem ele parece ter alguns sentimentos passionais desesperados).

E então novamente, em 2009, ele aparece com outro artigo, este publicado na PNAS, entitulado "Caterpillars evolved from onychophorans by hybridogenesis" (Lagartas evoluíram de onicóforos por hibridogênese), onde ele persiste em suas ideias absurdas, afirmando que lagartas surgiram de uma mariposa fêmea sendo acidentalmente fertilizada por um onicóforo macho, e ele continua ignorando qualquer coisa relacionada a dados moleculares, atacando as ideias de Darwin e Haeckel mais uma vez e citando somente trabalhos que, pelo seu ponto de vista limitado, poderiam suportar de alguma forma suas ideias incongruentes. Todos os artigos publicados durante estes mais de 20 anos em que ele passou afirmando a mesma bobagem, como um pastor fanático numa igreja, foram deixados de lado.

"Com licença,senhorita, mas você acabou de ser fecundada pelo meu sêmen." Os dois pais originais de uma lagarta, de acordo com Williamson, teriam sido um onicóforo e uma mariposa. Fotos por Thomas Stromberg e Jonathon Combes.

Enfim, este trabalho ganhou uma repercussão maior que os anteriores e muitos cientistas manifestaram sua indignação por ele, de forma que por dois meses o artigo foi suspendido de publicação impressa, até que finalmente apareceu impresso na edição de novembro daquele ano (2009).

Agora, falando sério, como é possível que uma ideia tão ridícula foi aceita para publicação neste século, depois de todos os pesquisadores sérios preocupados com a filogenia e ontogenia de animais?

Bom, foi possível por uma razão: Lynn Margulis. Foi ela quem aprovou o artigo, através de uma rota de submissão que permitia a membros da Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos gerenciar a revisão do manuscrito de um colega. Mas por que Lynn Margulis apoiaria tal ideia de um velho "cientista" aposentado e fora de si? Eu diria que é porque ela estava bem fora de si também.

Lynn Margulis. Foto por Javier Pedreira.
Se você conhece Lynn Margulis, você também sabe que ela já foi uma bióloga brilhante com ideias desafiadores, ajudando a tornar a teoria endossimbionte conhecida e eventualmente aceita para explicar a origem de cloroplastos e mitocôndrias. Mas em seus últimos anos (ela faleceu em 22 de Novembro de 2011) ela começou a atacar ideias bem suportadas em ciência de uma forma meio irracional, como afirmando que AIDS não é causada pelo HIV.

Quando este último trabalho de Williamson foi liberado para impressão, o mesmo número trouxe um desafio pelo zoólogo Gonzalo Giribet e um artigo por Hart & Grosberg rejeitando as ideias de Williamson baseados em todos os dados moleculares já disponíveis que claramente indicam que insetos holometábolos não possuem genes onicóforos de forma alguma para explicar tanta besteira.

Aparentemente Williamson preparou uma breve resposta, mas ela não foi liberada para publicação.

Assim, após ler isso, penso que qualquer um pode entender por que ninguém pode levá-lo a sério. Ou você pode de alguma forma acreditar que possa ficar grávida de uma água-viva enquanto está nadando no mar?

- - -

Referências:

Abbott, A., Brumfiel, G., Dolgin, E., Hand, E., Sanderson, K., Van Noorden, R., & Wadman, M. 2009. Whatever happened to …? Nature DOI:10.1038/news.2009.1162
Giribet, G. 2009. On velvet worms and caterpillars: Science, fiction, or science fiction? Proceedings of the National Academy of Sciences, 106 (47), e131 DOI:10.1073\pnas.0910279106
Hart, M., & Grosberg, R. 2009. Caterpillars did not evolve from onychophorans by hybridogenesis Proceedings of the National Academy of Sciences, 106 (47), 19906-19909 DOI: 10.1073/pnas.0910229106
Minelli, A., Brena, C., Deflorian, G., Maruzzo, D., & Fusco, G. 2006. From embryo to adult—beyond the conventional periodization of arthropod development Development Genes and Evolution, 216 (7-8), 373-383 DOI:10.1007/s00427-006-0075-6
Švácha, P. 1992. What Are and What Are Not imaginal Discs: Reevaluation of Some Basic Concepts (Insecta, Holometabola) Developmental Biology, 154, 101-117
Williamson, D. 1987. Incongruous larvae and the origin of some invertebrate life-histories Progress In Oceanography, 19 (2), 87-116 DOI: 10.1016/0079-6611(87)90005-X
Williamson, D. 2001. Larval transfer and the origins of larvae Zoological Journal of the Linnean Society, 131 (1), 111-122 DOI: 10.1006/zjls.2000.0252
Williamson, D. 2006. Hybridization in the evolution of animal form and life-cycle Zoological Journal of the Linnean Society, 148 (4), 585-602 DOI:10.1111/j.1096-3642.2006.00236.x
Williamson, D. 2009. Caterpillars evolved from onychophorans by hybridogenesis Proceedings of the National Academy of Sciences DOI:10.1073/pnas.0908357106